Por Victório Dell Pyrro
No Brasil, certas tragédias não precisam de chuva, enchente ou apagão para acontecer. Basta uma canetada burocrática. A mais recente veio da Anatel, que decidiu revogar a obrigatoriedade do prefixo 0303 para ligações de telemarketing. É o equivalente a demolir o único muro que ainda separava o cidadão comum da praga telefônica que, todos os dias, devasta nossa paciência.
O argumento oficial é quase poético — dizem que o 0303 “perdeu a função” porque as pessoas já não atendiam. Traduzindo: funcionava tão bem para o consumidor que as empresas reclamaram, e a agência resolveu atender ao choro delas. Agora, prepare-se: voltaremos à Idade das Trevas das chamadas anônimas, onde cada número desconhecido é um convite à irritação.
Uma epidemia que não respeita quarentena
O telemarketing, no Brasil, é uma epidemia crônica. Não respeita horários, feriados, fins de semana. Ele chega cedo, antes do café, e insiste à noite, no momento exato em que você está prestes a dormir. Pode ser para oferecer um cartão “sem anuidade”, um plano funerário ou até uma panela elétrica que você nunca pediu. Se houver um feriado prolongado, eles ligam para desejar “boas ofertas” — um vírus mutante que se adapta a todas as datas do calendário.
Com o fim do 0303, perdemos o que era nosso teste rápido para detectar a doença: bastava ver o prefixo e apertar “recusar” para preservar a saúde mental. Agora, qualquer número pode ser a contaminação do dia.
A indústria da interrupção
O mais irônico é que o telemarketing se vende como “serviço ao cliente”. Na prática, é uma fábrica de interrupções, onde operadores cumprem roteiros intermináveis para empurrar produtos que ninguém quer. É a “economia do incômodo”: quanto mais você for perturbado, mais chances eles acreditam ter de te convencer.
E a Anatel, em vez de criar uma barreira sanitária contra esse surto, optou por abrir as portas. Fala-se em “Origem Verificada” para daqui a 90 dias. Até lá, o cidadão fica exposto, como se fosse normal conviver com dezenas de chamadas indesejadas por dia.
Conclusão: quando a paz perde para o barulho
O Brasil é um país onde o consumidor já vive acuado por juros abusivos, tarifas escondidas e serviços precários. Agora, vai enfrentar novamente o bombardeio diário de chamadas não solicitadas — um cerco psicológico disfarçado de “liberdade de mercado”.
Quando o primeiro número desconhecido tocar e você atender pensando que é algo importante, lembre-se: a Anatel considerou que isso é progresso. E prepare-se para a ressaca — porque a peste telefônica não vai mais bater na porta. Ela vai entrar direto na sua sala, gritando “boa tarde, senhor, posso lhe fazer uma oferta?”.

