A aposentada Francisca da Silva de Souza, de 72 anos, moradora da periferia de Fortaleza, viúva e analfabeta, afirma ter sido vítima de um golpe que a transformou, sem saber, em presidente de uma entidade investigada pela Polícia Federal por fraudes contra aposentados do INSS.
O caso expõe a vulnerabilidade de idosos diante de práticas abusivas relacionadas a créditos consignados e associações de fachada.
Segundo Francisca, tudo começou quando buscava informações sobre um empréstimo consignado. Sem saber ler ou escrever, confiou no que lhe foi dito por pessoas que se apresentavam como intermediários. “Me explicaram que era só um papel para liberar o dinheiro do empréstimo. Eu confiei. Meses depois veio desconto no meu pagamento e disseram que eu era ‘presidente’ de uma associação. Eu nunca imaginei uma coisa dessas”, relatou a idosa, emocionada.
Golpe com uso de entidades fictícias
De acordo com investigações preliminares, o nome de Francisca foi usado para registrar formalmente uma entidade de fachada. Essas instituições, segundo a PF, firmam convênios junto a bancos e ao próprio sistema do INSS para permitir descontos diretos na aposentadoria de beneficiários, sem consentimento real.
Francisca teria assinado documentos acreditando contratar o crédito, mas na prática foi alçada a dirigente em atas cartoriais e registros que oficializaram a criação da associação. “Por ser analfabeta, ela usa impressão digital em papéis. Isso foi explorado por pessoas que se aproveitam da vulnerabilidade de cidadãos idosos”, explica um investigador que acompanha o caso.
A entidade tinha quase 492 mil associados, em maio de 2024, e descontava mensalidades diretamente das aposentadorias deles, recebendo milhões de reais por mês.
A Associação dos Aposentados e Pensionistas Nacional (Aapen), na qual Francisca figura como presidente, é uma das cerca de 30 entidades suspeitas.
Na terça-feira (20), a Defensoria Pública do Ceará ajuizou uma ação na Justiça estadual apontando uma fraude dentro da fraude: Francisca “foi indevidamente inserida como dirigente de uma entidade da qual jamais participou ativamente, não exercendo qualquer função de gestão ou controle”.
“Resta evidente que não se trata de presidente ou administradora de qualquer associação, mas sim de uma hipervulnerável enganada por pessoas inescrupulosas, assumindo, em razão da sua falta de informação, a condição de ‘laranja'”, afirma a Defensoria no processo.
Como responsável legal da Aapen, a idosa começou a receber centenas de cartas de cobrança de pessoas lesadas pela entidade. Há mais de 200 processos contra ela na Justiça.
Advogados entram em contato
Quando começaram os descontos em sua aposentadoria, a idosa buscou ajuda. Ela relata que advogados passaram a procurá-la, oferecendo-se para entrar com ações judiciais. Um grupo de representantes jurídicos entrou em contato diretamente, alegando já conhecer o esquema e propondo ajuizar processos para recuperar os valores. Porém, familiares de Francisca desconfiam que parte desses profissionais atua em parceria com as mesmas entidades que aplicam os golpes, numa prática que estaria sendo investigada pelas autoridades.
Para comprovar que foi enganada, a idosa anexou ao processo trocas de mensagens e áudios com esses advogados.
Atualmente, ela é representada por defensores que pedem a anulação de todos os vínculos oficiais que constam em seu nome, a devolução das quantias descontadas e indenização por danos morais. O processo tramita na Justiça Federal do Ceará e foi anexado aos inquéritos conduzidos pela Polícia Federal.
Em uma das conversas, em maio deste ano, Francisca se queixa das cobranças que tem recebido e diz temer que seu CPF seja cancelado. Um dos advogados responde que não existe esse risco.
A Aapen já foi presidida por uma advogada do Ceará, Cecilia Rodrigues da Mota, uma das investigadas pela PF na Operação Sem Desconto, contra as fraudes no INSS. Cecilia também presidiu, concomitantemente com a Aapen, uma outra entidade suspeita, a Associação dos Aposentados e Pensionistas do Brasil (AAPB).
Esquema em todo o país
As fraudes sob investigação não atingem apenas o Ceará. O Ministério Público Federal e a PF afirmam que práticas semelhantes foram identificadas em diversos estados. Estima-se que dezenas de milhares de aposentados possam ter sido atingidos.
O que dizem as entidades
A defesa da entidade em que Francisca aparece como presidente nega irregularidades e sustenta que todos os filiados assinam voluntariamente os termos de adesão. Apesar disso, relatos como o dela se multiplicam em diferentes regiões, reforçando a hipótese de um esquema estruturado de exploração de beneficiários vulneráveis.
A luta de Francisca
Viúva e sem filhos próximos, Francisca depende de uma renda modesta para sobreviver. Os descontos inesperados impactaram diretamente seu orçamento mensal, comprometendo gastos básicos com alimentação e remédios. “Eu só queria um empréstimo pequeno para ajeitar a casa. Agora estou no meio de um processo que não entendo direito”, disse.
A PF segue investigando os envolvidos. O caso reforça a atenção para golpes que utilizam associações fraudulentas como fachada, especialmente voltados para idosos e pessoas em situação de vulnerabilidade econômica.


