Por Victório Dell Pyrro
O ministro André Mendonça, do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), conseguiu o que poucos no Judiciário ousam: transformar um simples pedido de vista em um escândalo digno de manual sobre conflito de interesse. Nomeado em junho de 2024, o “terrivelmente evangélico” que chegou ao Supremo sob a bênção política de Jair Bolsonaro agora brilha, ironicamente, como símbolo de tudo o que a Justiça brasileira diz combater — a mistura tóxica entre poder, favorecimento e negócios particulares.
O episódio é tão constrangedor quanto revelador. Em agosto, Mendonça interrompeu o julgamento que decidiria a cassação do governador de Roraima, Antonio Denarium, acusado de abuso de poder político e econômico. A relatora já havia votado pela cassação, mas o ministro resolveu pedir vista — aquela manobra clássica que transforma tempo em tática e justiça em piada.
Mas o problema não é apenas o atraso no julgamento. É o cheiro de conflito de interesse que impregna todo o caso. Mendonça é fundador do Instituto Iter, que, como em um roteiro de comédia política mal escrita, recebeu R$ 273 mil do governo de Denarium para ministrar dois cursos de capacitação entre 19 e 26 de fevereiro de 2025. Um dos cursos, pasme-se, era sobre a Lei de Licitações — justamente a norma que o próprio contrato ignorou ao ser firmado sem licitação.
Foram 40 servidores treinados ao custo de R$ 45,5 mil por dia. O pagamento foi efetuado um mês depois de Denarium já ter recorrido ao TSE para tentar escapar da cassação. Coincidência? Só se for daquelas coincidências que se repetem demais no Brasil para ainda soarem inocentes.
Mendonça tenta se defender dizendo que não exerce funções administrativas no Iter e que sua atuação se restringe a eventos e palestras. Mas a Lei Orgânica da Magistratura (LOMAN) é clara: basta o vínculo com entidades que mantenham negócios com partes de processos sob julgamento para que o magistrado deva se declarar impedido. A omissão do ministro, portanto, não é apenas descuido — é afronta aberta aos princípios da ética judicial e ao decoro que se espera de um membro da mais alta corte eleitoral do país.
O resultado é devastador. O TSE, já fragilizado pela desconfiança pública e pela politização crescente, vê-se agora transformado em palco de conveniências pessoais e favores políticos. Mendonça, que chegou à corte com o discurso de moralidade e fé, parece ter trocado a pregação pela prática da conivência — um juiz-parte investido de guardião da legalidade.
O pedido de vista, que deveria durar trinta dias e foi renovado por mais trinta, agora dorme em berço esplêndido, enquanto o processo que pode retirar Denarium do poder agoniza na gaveta. A Justiça eleitoral, que deveria zelar pela lisura do voto e pela igualdade democrática, assiste passivamente a mais um capítulo do teatro da procrastinação — onde o tempo serve de escudo e o silêncio, de cumplicidade.
É urgente que o TSE e o Supremo Tribunal Federal enfrentem o caso com a seriedade que ele exige. A suspeição de Mendonça deveria ser automática, e a continuidade de sua participação no julgamento é uma mancha institucional. A cada dia que o processo permanece paralisado, o Judiciário se afasta mais da ideia de imparcialidade e se aproxima da imagem de um poder que se julga acima da lei — ou, pior, capaz de moldá-la a seu favor.
O caso André Mendonça não é apenas sobre um pedido de vista. É o retrato cruel de um sistema onde a toga se confunde com a farda partidária, e a moral cristã se dilui diante do pragmatismo dos contratos públicos. Um lembrete amargo de que, no Brasil, o escândalo nunca é o ponto final — é só o começo da próxima vista.




