Caso Benício: delegado aponta erro na prescrição de adrenalina e cita tentativa de adulterar prontuário por médica investigada; família e hospital divergem sobre falha em sistema em Manaus
Benício Xavier, de 6 anos, morreu na madrugada de 23 de novembro após receber doses de adrenalina por via errada em um hospital particular de Manaus, no Amazonas, e o caso passou a ser investigado como homicídio doloso qualificado pela Polícia Civil.

O inquérito ganhou novo peso depois que ao menos três testemunhas relataram que a médica responsável pelo atendimento, Juliana Brasil Santos, teria tentado adulterar o prontuário eletrônico para ocultar o erro de prescrição, segundo o delegado Marcelo Martins, titular da Delegacia Especializada em Crimes Contra a Criança e o Adolescente (Depca).
O atendimento e a morte de Benício
Benício deu entrada no Hospital Santa Júlia, em Manaus, na noite de 22 de novembro, com tosse seca e suspeita de laringite, segundo relato da família.
De acordo com os pais, o menino recebeu lavagem nasal, soro, medicação para tosse e três doses de 3 ml de adrenalina aplicadas por via intravenosa, em intervalos de cerca de 30 minutos, por uma técnica de enfermagem.
Após as aplicações, o quadro da criança se agravou: a saturação de oxigênio caiu para cerca de 75%, ele foi levado à sala vermelha e, em seguida, transferido para a UTI por volta das 23h, onde sofreu sucessivas paradas cardíacas durante o processo de intubação. No total, segundo a investigação, foram seis paradas até a morte ser confirmada às 2h55 do dia 23 de novembro.
O erro na prescrição e as versões em disputa
A médica Juliana Brasil Santos admitiu, em documento encaminhado à polícia e em mensagens trocadas com o colega Enryko Garcia, que prescreveu adrenalina pela via endovenosa, quando o indicado para o quadro de Benício seria o uso inalatória/nebulização.

Em depoimento, a técnica de enfermagem Raiza Bentes Paiva afirmou que apenas seguiu o que estava registrado no sistema e aplicou a medicação conforme a prescrição eletrônica.
A defesa de Juliana sustenta que a profissional reconheceu o erro “no calor do momento” e argumenta que uma falha no sistema informatizado do Hospital Santa Júlia teria alterado a via de administração registrada, trocando a opção de nebulização por endovenosa sem que ela percebesse.
Os advogados também apontam supostas falhas estruturais do hospital, que teriam contribuído para o desfecho, e negam qualquer tentativa de manipular provas.
Suspeita de adulteração do prontuário
A versão de tentativa de adulteração surgiu a partir dos depoimentos de profissionais que estavam no plantão no momento do atendimento.
Segundo o delegado Marcelo Martins, pelo menos três testemunhas disseram que a médica teria tentado acessar a prescrição original no sistema para suprimi-la ou editar os dados, de modo que não aparecesse o registro da adrenalina pela via errada.
De acordo com Martins, os relatos apontam que Juliana buscou ajuda de funcionários do setor de tecnologia da informação e de colegas para alterar o prontuário eletrônico após a morte da criança, o que, se confirmado, pode caracterizar tentativa de destruição ou adulteração de prova.

Imagem: Reprodução de redes sociais
O delegado afirma que essas circunstâncias são consideradas na análise sobre eventual dolo eventual, ou seja, se houve indiferença em relação ao risco à vida de Benício e posterior tentativa de encobrir o erro.
Investigação policial e medidas judiciais
O caso é conduzido pela Depca como homicídio doloso qualificado, com foco na conduta da médica e da técnica de enfermagem, ambas investigadas em liberdade.
A polícia já ouviu pais de Benício, profissionais da UTI que o atenderam após o agravamento do quadro, médicos e enfermeiros que estavam de plantão no dia da morte, além de Enryko Garcia, que confirmou a troca de mensagens em que Juliana assume o erro na prescrição.
Apesar das suspeitas de manipulação de provas, o delegado explica que um pedido de prisão não pode ser formulado neste momento porque a Justiça concedeu liminar em habeas corpus apresentado pela defesa da médica, impedindo medidas cautelares mais gravosas até a conclusão de etapas da investigação.
A equipe aguarda também o resultado de perícia técnica no sistema informatizado do hospital, que deve apontar se houve ou não falha capaz de alterar automaticamente a via de administração dos medicamentos.
Posição da família e do hospital
Em carta aberta divulgada nas redes sociais, os pais de Benício contestaram a tese de erro de sistema e afirmaram que o prontuário do próprio hospital mostra, horas depois, prescrição correta de adrenalina por via inalatória na UTI, o que indicaria funcionamento normal do software.
A família cobra transparência total do Santa Júlia, responsabilização dos profissionais e mudanças nos protocolos para evitar que outros pacientes sejam expostos ao mesmo risco.
O hospital, em notas públicas, diz colaborar com a investigação, lamenta a morte da criança e reforça que abriu apuração interna para verificar eventuais falhas de conduta ou de estrutura. [6][5] A unidade não se manifesta sobre detalhes do prontuário, alegando sigilo médico, mas afirma que entregou toda a documentação solicitada pela Polícia Civil e pelos órgãos de fiscalização profissional.
Próximos passos e repercussão
Além da Polícia Civil, o Conselho Regional de Medicina do Amazonas e o Conselho Regional de Enfermagem apuram a conduta da médica e da técnica envolvidas no atendimento, o que pode resultar em sanções éticas, como suspensão ou cassação de registro, independentemente da esfera criminal.
O Ministério Público acompanha o inquérito para decidir sobre eventual denúncia por homicídio doloso ou culposo, levando em conta o laudo de necropsia, os exames complementares e o resultado da perícia no sistema do hospital.
O Caso Benício provoca forte comoção em Manaus, reacende o debate sobre segurança em pronto-atendimentos pediátricos e expõe fragilidades no uso de prontuários eletrônicos, especialmente quanto à conferência de prescrições e à rastreabilidade de alterações no sistema.
Movimentos de familiares de vítimas de erro médico e entidades de defesa do paciente cobram protocolos mais rígidos de dupla checagem de medicamentos, alarmes para doses e vias de administração e auditorias independentes em hospitais privados e públicos.



