Peter Liu foi condenado no Tribunal Regional do Trabalho de Campinas por trabalho análogo à escravidão
Com mais de 3 milhões de inscritos no Youtube, Peter Liu promete, nas redes sociais, cuidar “do corpo, da mente e da alma” com métodos de medicina chinesa. Uma condenação do Tribunal Regional do Trabalho (TRT) de Campinas, no interior paulista, mostra que o sucesso na internet foi sustentado por trabalho escravo para cuidar da família, das tarefas domésticas e da clínica do influenciador.
Peter Liu disse que a vítima é funcionária de sua ex-esposa e que não tem mais contato com ela há mais de 20 anos. No entanto, fotos anexadas ao processo em que ele foi condenado por manter a empregada em trabalho análogo à escravidão mostram Liu ao lado da filha, do genro e da funcionária em uma sorveteria em São José do Rio Preto (SP), em agosto de 2018.
Em 1992, Peter Liu e a esposa, Jane Liu, vieram da China para o Brasil e se estabeleceram em Recife (PE). À época, uma amiga em comum apresentou a funcionária para tomar conta do filho mais velho do casal.
Nos primeiros seis meses como babá, ela disse que recebeu um salário mínimo por mês, mas não houve registro profissional. A família chinesa teria prometido que a situação trabalhista seria regularizada assim que eles fossem naturalizados brasileiros.
Segundo o relato da vítima, depois dos primeiros meses, as promessas não se realizaram e a funcionária foi convidada por Jane, mãe dos filhos de Liu, para se mudar para São Paulo. A família foi para Campinas, no interior paulista, escapando de uma autuação por clínica irregular em Recife.
Quando chegou em Campinas, a empregada doméstica, que é semianalfabeta, parou de receber salário. Ela é de Belo Jardim, cidade de 83 mil habitantes no interior de Pernambuco, tem 59 anos e viveu em condição análoga à escravidão com a família Liu desde os 27 anos.
Segundo o processo, ela viveu nesta situação até 2022, quando, enfim, tomou ciência dos supostos abusos trabalhistas e pediu pelo pagamento do salário. Diante disso, ela teria sido ameaçada de morte por Jane, que também teria feito ameaças à família da empregada.
A família Liu recorreu da condenação, proferida em agosto deste ano, pelo juiz Caio Rodrigues Martins Passos, da 10ª Vara do Trabalho de Campinas. A funcionária pede um valor maior de indenização, enquanto a família alega que não havia vínculo trabalhista.
Paradoxalmente, a empregada vive hoje com a filha de Liu e Jane, Anni, que também foi condenada no mesmo processo que os pais e o irmão. Ela pede para ser perdoada da condenação, alegando que, quando compreendeu que Maria era uma escrava, tomou as medidas cabíveis para retirá-la dessa condição.
Anni teria ajudado a funcionária a procurar terapia e proibido ela de voltar à casa dos pais para ajudar em tarefas domésticas. Nesse processo, a vítima encontrou um advogado que a ajudou a mover uma ação contra toda a família que a manteve escravizada.
Em depoimento na Justiça, Anni afirmou que rompeu os laços familiares com os pais por causa da forma como a empregada era tratada. Anni relatou vários xingamentos xenofóbicos e contou que a vítima dormia em um quarto que dividia com um depósito de materiais e já foi picada por um animal peçonhento na casa dos Liu, mas não recebeu tratamento médico.
No processo, a defesa da família levanta suspeita sobre a a ajuda de Anni a empregada. “Qual a real intenção da autora em promover ação temerária de reconhecimento de vínculo e trabalho análogo à escravidão contra sua sócia e seu atual núcleo familiar, com quem segue morando e vivendo? Se isso é um problema, não se justifica a permanência da mesma na mesma residência”, questionam os advogados.
Anni é representada por um escritório de advocacia diferente dos pais e do irmão. A filha dos Liu alega que não havia nascido quando a funcionária começou a trabalhar para a família e chegou a torná-la sócia da empresa de saúde que tem em Olímpia (SP), a 340 km de Campinas, como forma de dar-lhe “independência financeira”.
Embora os Liu digam na defesa que a empregada faz parte da família, os filhos que a empregada viu crescer fizeram faculdade e se formaram em medicina, enquanto a vítima, segundo a filha dos Liu, era chamada de “nordestina burra” e não tem formação escolar.
A denúncia diz que a empregada começava a trabalhar das 7h às 22h, quando era permitido que ela se alimentasse. Quando Davi fazia faculdade, ele chegava de madrugada e acordava a funcionária pedindo que ela fizesse lanche.
Em alguns momentos, ela tinha que dormir na maca do consultório de medicina chinesa que funcionava junto com a casa da família. A funcionária foi introduzida a conceitos básicos das terapias orientais e, além de ser responsável por afazeres domésticos, tinha de preparar pacientes da clínica e atuava como secretária do consultório.
Ao longo dos 30 anos, o único dinheiro recebido por ela eram os trocados de compras que fazia para os Liu.
Escravidão foi lucrativa, diz denúncia
Os Liu foram condenados a pagar R$ 400 mil de indenização à empregada, mas a defesa dela argumenta que o valor é exíguo diante dos traumas causados por 30 anos de trabalho “sem salário e sem dignidade”.
Segundo o advogado, o patrimônio da família Liu é de R$ 10 milhões, que poderia obter o valor da indenização em oito meses por meio de uma aplicação financeira simples.
“Não se deve deixar que a atividade de escravizar seres humanos se torne uma atividade lucrativa, algo que compense para os escravizadores, que torne banal o trabalho análogo à escravidão e seja ‘economicamente viável’”, diz a denúncia.
O juiz ordenou que os autos sejam encaminhados ao Ministério Público do Trabalho (MPT), ao Ministério Público Federal (MPF) e à Polícia Federal (PF).
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