Dados da plataforma usada pela PM paulista para armazenar imagens das câmeras mostram esquema para deletar gravações com usuário anônimo
Investigação aponta possível esquema de fraudes envolvendo uso de câmeras corporais na Polícia Militar
Uma investigação interna da Polícia Militar de São Paulo revelou indícios de um possível esquema articulado por integrantes da corporação para fraudar o uso de câmeras corporais, equipamento considerado fundamental para garantir a transparência na atuação policial e a proteção tanto de agentes quanto da população.
O caso veio à tona após a Corregedoria da PM identificar registros incomuns no sistema de monitoramento dos dispositivos. Um relatório técnico preliminar apontou a ocorrência de “apagões”, desativações não justificadas, alterações indevidas de horário e até o uso irregular das câmeras por policiais que deveriam estar de folga. As suspeitas indicam que parte do efetivo teria encontrado formas de burlar o sistema de gravação para evitar a captação de imagens em abordagens potencialmente abusivas.
Informações extraídas da plataforma usada pela Polícia Militar de São Paulo para armazenar as imagens das câmeras corporais dos PMs indicam esquema de manipulação de dados que permite fraudar e deletar as gravações por meio de usuário anônimo dentro do sistema.
Registros da plataforma Evidence em que uma major ligada à cúpula da corporação teria fraudado o sistema para deletar gravação feita durante homicídio em Santos, no litoral paulista, na Operação Verão.
A Secretaria da Segurança Pública (SSP) afirma que a denúncia desse caso é investigada em sindicância interna da Polícia Militar.
A ocorrência aconteceu na tarde de 9 de março de 2024, no Morro do José Menino. Joselito dos Santos Vieira, de 47 anos, foi morto com três tiros de fuzil e nove de pistola, em suposto confronto com policiais militares. Parentes da vítima ouvidos pela reportagem na época questionaram a versão oficial e afirmaram que Joselito não possuía arma de fogo. O caso foi arquivado em junho deste ano.
Pelo menos seis policiais estavam presentes na ocorrência. Entre eles, o então coordenador operacional da PM, Gentil Epaminondas Carvalho, e o coronel Carvalho, número três na hierarquia da corporação. A major que teria atuado para que as imagens da ocorrência fossem deletadas é Adriana Leandro de Araújo, que era diretamente subordinada ao coronel.
Um dos responsáveis por implementar o sistema das câmeras em São Paulo, o ex-soldado e especialista em provas digitais Bruno Dias afirma que qualquer policial habilitado na plataforma pode alterar a própria permissão e deletar vídeos em massa.

“O sistema tem inúmeras vulnerabilidades. É totalmente passível de fraude. Existe uma permissão chamada ‘alterar a permissão’. Um policial pode alterar a própria permissão, se colocar como administrador do sistema e fazer o que ele quiser no sistema. Em torno de seis policiais por batalhão poderiam fazer isso”, afirma Dias.
“Você pode apagar vídeos avulsos, apagar em massa. Você pode alterar a autoria, deixar o vídeo sem autor relacionado. Você pode também alterar data e hora do fato. Isso é gravíssimo. Compromete a legitimidade dos vídeos enquanto provas”, completa.
A gravação deletada da ocorrência que resultou na morte de Joselito dos Santos Vieira foi feita pela câmera corporal do soldado Thiago da Costa Rodrigues.
Nos inquéritos civil e militar, não há indícios de que o policial tenha feito disparos de arma de fogo. No entanto, ele estava na mesma viatura dos policiais que atiraram e são acusados pelo homicídio.
No veículo, de código E-M12012, além de Thiago, estavam a subtenente Regiane Ribeiro De Souza, que efetuou três disparos de pistola calibre 22, o soldado Bruno Pereira dos Santos, que fez dois disparos de pistola .40, e o cabo Felipe Alvaram Pinto, que efetuou três disparos de fuzil calibre 5.56, de acordo com informações do inquérito policial militar.
Em uma viatura de apoio, de código E-M12013, estava o cabo Bruno de Oliveira Silva, que teria efetuado um disparo de fuzil 7.62.
O então coordenador operacional da PM, coronel Gentil Epaminondas Carvalho, estava em uma viatura descaracterizada. Segundo a SSP, a participação do oficial em incursões da Operação Verão se deu para fiscalizar e orquestrar atividades de campo.
As equipes foram enviadas ao local porque, horas antes, o policial Ruterval Adriel Jorge havia sido baleado na região, em outra rua do Morro do José Menino.
Enquanto as equipes procuravam pelos suspeitos, Joselito foi morto na rua Pedro Borges Gonçalves, por volta das 16h40. A polícia diz que ele teria se escondido em uma garagem e atirado contra a equipe.
O laudo necroscópico do Instituto Médico Legal (IML) indica que o corpo Joselito foi atingido por 12 disparos, apesar de os policiais envolvidos na ocorrência e o IPM mencionarem apenas nove.
A plataforma Evidence, utilizada pela Polícia Militar para processar os vídeos das câmeras corporais, mostra que a gravação da câmera do soldado Thiago foi introduzida no sistema às 5h17 de 10 de março de 2024, dia seguinte à ocorrência.
Oito dias depois, em 18 de março, a major Adriana Leandro de Araújo acessou o arquivo às 16h28 e mudou o nome do policial envolvido. A filmagem foi atribuída a um usuário anônimo, com nome “Usuário de Operações”, cadastrado na plataforma com um e-mail externo ao da corporação, com o domínio “gmail”.
Mais tarde, às 17h01 daquele dia, a major alterou a data da ocorrência para 5 de janeiro de 2024. Ela também mudou o nome da ocorrência no sistema para “tt” e depois para “Z-13”, sigla que costuma ser utilizada em ocorrências envolvendo pequenas brigas, por exemplo, e que não está associada a homicídio.
Com essas modificações, seria impossível localizar o arquivo por meio de uma busca simples, já que ele não possui um código de identificação fixo.
“A principal forma de pesquisa para encontrar um vídeo é justamente pela data e pela hora”, afirma Bruno Dias. “Mas, como o sistema permite alterar, você não consegue mais localizar esse vídeo. O sistema tem hoje em média 20 milhões de vídeos. Como você vai localizar? Você precisa dos metadados. Mas os metadados são totalmente adulteráveis dentro do sistema. Você fica totalmente ali sem entender como achar.”
Mesmo assim, em 19 de março de 2024, dia seguinte às primeiras alterações, Adriana Leandro de Araújo acessou o arquivo mais uma vez. Às 12h43, ela apertou o botão “excluir”, para deletar o vídeo.
As operações no arquivo constam em uma auditoria de usuário feita pela Axon. O documento interno, vazado para imprensa nessa segunda-feira (28) foi emitido em 26 de abril de 2024. A reportagem também teve acesso a uma série de questionamentos feitos à empresa pela própria Polícia Militar, sobre manipulações indevidas feitas em vídeos de ocorrências.
Em notificação enviada à Axon por meio da Diretoria de Tecnologia da Informação e Comunicação, em 17 março de 2022, a corporação afirma que um usuário com o nome genérico “Axon” alterou o status de imagens inseridas no sistema anteriormente.
No documento, a PM paulista reconhece que “não é possível realizar uma auditoria” para determinar quais operações teriam sido feitas pelo usuário.
Além disso, de acordo com fontes ligadas à Secretaria de Segurança Pública (SSP), um dos métodos investigados envolve a troca proposital de coletes — onde as câmeras são acopladas — entre policiais, o que dificultaria a rastreabilidade dos agentes em determinadas ações. Outra tática suspeita consiste em manter as câmeras ligadas, porém voltadas para superfícies como o asfalto ou paredes, sem captar o que de fato ocorre nas operações.
Os indícios foram colhidos principalmente a partir do cruzamento entre imagens gravadas, localização por GPS e escalas de serviço. Em alguns casos, os dados indicam que a câmera estava sendo utilizada fora do horário de expediente, ou em locais distintos dos previstos, o que reforça a suspeita de manipulação ou empréstimo irregular entre os agentes.
A Corregedoria instaurou um procedimento disciplinar sigiloso para apurar a conduta de dezenas de policiais. Não há, até o momento, número oficial de envolvidos ou confirmação sobre eventual afastamento de servidores. A SSP confirmou a existência da apuração e afirmou que está tomando todas as medidas cabíveis para garantir a integridade do sistema de monitoramento e a responsabilização dos envolvidos.
As câmeras corporais passaram a ser adotadas de forma mais ampla em São Paulo a partir de 2020, como parte de um esforço para modernizar a atuação da PM e reduzir a letalidade policial. Estudo recente da Fundação Getúlio Vargas (FGV), citado por autoridades estaduais, indicou que batalhões que utilizam o equipamento registraram queda significativa nas mortes durante operações.
Entidades de direitos humanos, no entanto, vêm denunciando possíveis brechas no controle do uso dos dispositivos. A Defensoria Pública de São Paulo já havia alertado para a necessidade de auditorias independentes e maior rigor na fiscalização do funcionamento das câmeras. Segundo o órgão, a efetividade do programa depende da integridade dos dados e da impossibilidade de manipulação por parte dos usuários.
O governador Tarcísio de Freitas (Republicanos), que já demonstrou resistência à expansão do programa, afirmou que “eventuais fraudes devem ser investigadas com rigor” e que a transparência nas ações policiais é um compromisso de sua gestão. Ele, contudo, não confirmou se haverá ampliação do uso das câmeras ou revisão das regras de funcionamento.
A investigação segue em sigilo e deve ter novos desdobramentos nos próximos dias. O Ministério Público Militar também foi acionado e poderá oferecer denúncia caso sejam confirmados indícios de crime militar, como falsidade ideológica, prevaricação ou abuso de autoridade.

